Quando cem anos de
Felicidade não cabem dentro de um coração.
Carlos Alberto dos
Santos Dutra
Existem dias na
nossa vida que são iluminados. Um desencontro no relógio, no roteiro de nossa
caminhada ou um compromisso que não foi cumprido, e o imprevisto, de súbito,
acontece e nos coloca diante do inusitado.
O que era para ser
apenas uma visita rápida, se estendeu por toda aquela manhã diante daquela
senhora – dona Diolinda --, que nos recebia em sua propriedade alegremente.
Pelos seus
préstimos e êxitos como agricultora familiar fora procurada para referendar um
projeto que incluía e revelava os frutos de sua habilidade horticultora com
alcance e aura transcendental.
Foi quando as
atenções dos visitantes repousaram sobre um outro rosto que sob o sol daquela
manhã o fazia brilhar ainda mais. Olhos muito vivos manifestavam inquietação
comedida, revelando interesse com o que ocorria a sua volta.
E ela estava lá,
sentada numa cadeira de rodas, embora, ao que parece, não precisasse dela para
dar os passos ainda firmes sobre aquele chão e sentir a grama verde que cobria
o entorno do lar que lhe abrigava naqueles dias.
Muito atenta e
falando alto, com pronúncia tonal, esmerava-se para ouvir o que os visitantes
falavam. Depois das apresentações formais, um sentimento de afeto eis que nos
envolve a todos. É quando as atenções todas se voltam para ela.
Em profunda
sintonia com aquela senhora, foi a vez, então, deste escrevinhador puxar a
cadeira e sentar-se ao seu lado e buscar beber na fonte pétalas de sabedoria
daquele ser radiante.
Passo então a
ouvir não somente as palavras que brotam da boca daquela senil senhora, mas
as palpitações daquele inquieto e longevo coração. Coração de uma mulher que
foi filha, irmã, esposa, mãe e avó, e que atende pelo nome de Felicidade. Sim, a
felicidade não poderia estar em melhor companhia.
As palavras
lançadas ao ar pronunciadas por aquela senhora eram como o rufar de asas de
colibris serelepes que se misturavam com as perguntas que um e outro faziam,
num turbilhão de sons que confundiam aquele semblante que nenhum pouco se
importava. Apurava o ouvido para que o aparelho auditivo, que usava já há alguns
anos, lhe permitisse entender e interagir com os ruídos do mundo que a rodeava.
--Quantos anos a
senhora tem, vovó?
--Onde a senhora
nasceu?
--Quantos filhos a senhora teve?... E assim por diante.
Perguntas que buscavam adentrar aquele universo humano ainda desconhecido, sobretudo, para aqueles ilustres e jovens visitantes. Perguntas que a colocavam no centro do mundo oportunizando que pudesse demonstrar seu vigor e o quanto se sentia viva e feliz por isso.
--Tenho 102 anos.
Nasci em 1923, confessa, para a surpresa de todos. Olha nos meus olhos e,
sorrindo, pergunta quantos anos eu tenho. Digo-lhe que em fevereiro irei fazer
70 anos. Ela se admira pois também aniversaria em fevereiro. E me diz sorrindo que ainda sou jovem.
–O senhor não tem
rugas.
Respondo-lhe que
quem é jovem ali é ela, pois depois de tantos anos de vida ela está bela
e muito forte.
Dona Diolinda, que
recebe dona Felicidade em sua casa, lembra que ela nunca foi ao médico e que
somente quando um animal lhe feriu a perna teve de ir ao hospital. Caso contrário
sua saúde é de ferro, brinca.
Ao falar de suas
origens, dona Felicidade confessa com orgulho que seus antepassados todos eram
gaúchos que vieram para o antigo Mato Grosso. Seus avós teriam vindo de
Tupanciretã, no Rio Grande do Sul, depois, seus pais firmaram-se no Mato Grosso
do Sul.
Mais do que as
palavras e as lembranças, o que impressiona àqueles que se postavam a sua volta
para ouvi-la era o força de suas palavras, o brilho dos olhos e a afeição de
simpatia e vigor, algo como que dizendo que se sentia uma jovem menina interagindo
com aqueles jovens estudantes que visitavam a propriedade e mantinham os olhos fixos nela.
Impossível não correr
ao seu encontro e abraça-la depositando sobre a sua fronte um ósculo de
satisfação e graça, como se lá do céu a dádiva de tê-la conosco naquele
momento imanasse a mais terna gratidão: a de ter vivido este momento divino e
celeste com um ser, tão original e verdadeiro, calcado ainda com os pés muito firmes no chão e a alma livre e solta em suas mãos.
Te amamos, dona
Felicidade.
Brasilândia/MS, 27
de agosto de 2025.
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