domingo, 25 de outubro de 2020

Seu Joaquim Quinança, seu sorriso e uma longa história de amor.

Carlos Alberto dos Santos Dutra




Muitas pessoas que passam por nós pela rua nos acostumamos vê-las sempre pela aparência e não pelo que realmente são. Algumas marcam presença pelo sorriso, seus trejeitos e alegria. Outras pelo semblante sério, às vezes ranzinza, circunspeta, quando vistas superficialmente. Na maioria das vezes, entretanto, nossos olhos nos enganam e nos equivocamos ao identificarmos quem se encontra a nossa frente.

Naquele dia eu voltava do trabalho e ao passar em frente da casa de dona Ignes, que se encontrava acamada há meses, adentrei ao pequeno portão. Encontrei-a sentada na área da casa ao lado da filha, professora Cleonice, que lhe fazia companhia e prestava assistência naquele momento. Com dificuldade de falar, mas com o olhar muito ativo, travou comigo um diálogo que tocou minha alma: --sempre vejo o senhor passar apressado todos os dias aqui na frente.  --E às vezes nem sequer dando-lhe bom dia, pensei.

A lição estava dada e o aprendiz carente de humanidade estava agradecido. Mas aquilo não fora o bastante. O grande encontro ainda estava por acontecer. Olho para o lado e, sentado um pouco mais adiante, observo a figura de um senhor de idade, com o olhar distante, como que a espera de alguma coisa que o fizesse ser notado.

Era o senhor Joaquim Ferreira de Souza, popularmente conhecido como Joaquim Quinança, apelido que recebeu ainda na sua terra natal, a cidade de Paraíso/SP. De camisa social e calças bem alinhadas, traços do rosto simétrico bem definidos, ostentava ainda uma pequena barba que lhe cobria parte do rosto. Parecia um galã maduro, de cinema, figurante do filme Novecento, de Bernardo Bertolucci.

Chegou até a mim e num olhar cumprido de tristeza suspirou, revelando sua preocupação com a saúde da esposa, não se conformando de vê-la assim, impedida de voltar a caminhar e falar, de ser a companheira que era, de tantos anos. Às vezes saía pela rua caminhando a esmo, para a preocupação das filhas Maria Helena e Cleonice que saíam em sua busca, o acompanhando a distância, cuidando para não serem notadas, durante as escapadas furtivas que o pai dava pela redondeza.

Homem criativo, de fôlego e tenaz vigor, sempre foi assim, desde sua juventude. Quando nasceu, em 26 de fevereiro de 1930, seu pai Ovídio e dona Maria Felícia depositaram nele todas as suas esperanças, mesmo sendo ele o mais novo dos irmãos, Manoel, Pedro, Benedito e Felícia. E não se decepcionaram: o menino cresceu e venceu tornando-se um homem forte e altivo.

Passou a infância e juventude na sua cidade natal. Ali fez seus primeiros estudos, não avançando, porém, além do quarto ano primário. Tinha pressa de viver e colocar em prática seus sonhos e aspirações. Aos 20 anos de idade, no dia 15 de julho de 1950, casou com dona Ignes da Costa Souza que vivia na mesma cidade, com quem construiu uma linda e longínqua história de amor.

Muito religioso, o casal nutria o entendimento que o casamento era para toda a vida. E os anos foram generosos com eles. Em 2000 comemoraram bodas de ouro (50 anos de casados); em 2010, festejaram bodas de diamante (60 anos de casado), e em 2020, tiveram a graça de celebrar, como poucos, suas bodas de vinho (70 anos de casado). Não haviam recebido bênção maior.

Desde moço viveu os seus dias intensamente. Seu Joaquim tinha o dom de transformar cada dia vivido numa deliciosa e promissora aventura. A máxima latina de Horácio que dizia carpe diem, ele viveu-a em plenitude. Recorda a filha que, além do estado de São Paulo, também morou no estado do Paraná, vindo depois, para Brasilândia chegando aqui no mês de fevereiro de 1971.

Homem de vários ofícios, sua primeira casa em Brasilândia a construiu de madeira, com as próprias mãos. Depois, finalmente edificou sua casa definitiva no centro da cidade, onde passou o resto de sua vida, residência onde a esposa vive até hoje. Também teve uma máquina de beneficiar arroz localizada nos fundos da atual Prefeitura e onde hoje é a casa do senhor José Leite de Noronha, na Avenida Boa Esperança.

Como todo o pioneiro desta cidade, em tempos passados enfrentou todas as dificuldades que o pequeno município então apresentava: viagens em estradas precárias, todas de terra; a carência de energia elétrica, quando a iluminação da cidade era garantida por um motor a diesel somente por algumas horas; a água que era de poço ou de caminhão pipa, mesmo no centro da cidade, entre outros desafios.

Ah, seu Joaquim Quinança...

Quem o visse assim, de aspecto franzino e sorridente, mal sabia o homem de fibra que aquele semblante escondia. Trabalhou a maior parte da vida num sitio que adquiriu de seu irmão Dito Quinança, no córrego Jardim. Foi neste contato com a cultura do campo e interação com a terra e seus frutos que a vida lhe pareceu mais digna de ser vivida, dando-lhe forças para constituir uma família sólida e carregar no colo as dedicadas filhas, Maria Helena e Cleonice, ternos e doces presentes que Deus lhe deu.

Família que iniciou pequena, logo, entretanto, desabrochou. Em poucos anos, já se encontrava o casal rodeado de cinco netos: Heder, Heldir, Hilton, Alessandra e Celso Filho. Mais alguns anos e um renovado sorriso se instala no rosto de Joaquim e Ignes com a chegada de dez bisnetos: Amanda, Giovana, Lana, Ryan, Yoná, Laura, Beatriz, Hiago, Heitor e Rafaela. E por fim, pouco antes de seu falecimento, a tataraneta Maria Luiza, deu-lhe a alegria de deixar-se abraçar e receber a bênção de despedida de tão carinhoso e sorridente avô.

Olho para o seu Joaquim de agora e o pensamento retorna no tempo, quando este escrevinhador, ainda de cabelo negros e longos, causava estranheza àquele senhor. Mas o tempo é o senhor da história, e agora tão próximo vejo o quão alegre e feliz era este homem. Carregava sempre na algibeira da alma sua historia e suas memórias, permanecendo o que sempre fora: um homem de trato simples, sempre conversador, tinha o habito de falar alto, sempre gesticulando, lembra a família.

De uma coisa seu Joaquim não abria mão. Uma das coisas que mais gostava era contar causos, relembrando os seus tempos de caçada e pescarias. Isso o fazia remoçar e o enchia de satisfação, tornando a vida, para ele, pura diversão. Estava sempre cantarolando e inventando letras para as músicas. Um ser fantástico para quem o conheceu de perto.

Estando no sítio ou em sua casa, ele tinha o maior prazer em receber os amigos e parentes, mesmo de passagem, fazia questão que entrassem, sentassem e conversassem, recebendo a todos e sempre fazendo-lhes um agrado. As filhas com emoção lembram que ninguém saía dali sem tomar o seu café. Com aquele ar de obstinada inocência ele dizia para dona Ignes: --Minha ‘veia’ faz um cafezinho para as visitas. Aquilo era sagrado.

Para quem viveu 70 anos ao lado de alguém, a vida pode representar uma eternidade. Também pode ser lembrada em um segundo, com uma palavra: dedicação. São flashes de momentos vividos pelo casal que enchem de ternura e saudade as filhas e os netos que estiveram ao seu lado. E lá vai seu Joaquim em sua caminhonete levando o sustento da família, ano após ano, quase anônimo pelas estradas, indo e voltando todos os dias do sítio para o trabalho, na lida no campo e a vida na cidade.

Profundamente católico, seu Joaquim era um homem de muita fé. Não saía de seu quarto pela manhã sem antes fazer sua oração de agradecimento e pedido de proteção para mais um dia que iniciava. Foram dias que Deus em sua generosidade o presenteou em abundância - 90 anos de vida -, permitindo mantê-lo lúcido e com os olhos voltados para o que era mais importante: sua esposa, seu maior tesouro e a família.

Os olhos estão marejando enquanto seu Joaquim acena para a esposa Ignes que o observa somente com os olhos, pois se encontra imobilizada devido a uma paralisia facial progressiva que cada vez mais avançava. Não suporta vê-la assim. Abana a cabeça em sinal de tristeza, mas não se desespera. Olha firme nos meus olhos, como que comunicando a sua dor, e prossegue. Encontra forças no fundo da alma e sorri. Sim, ele sorri, manifestando a alegria que sempre demonstrou a todos. Torna a colocar o chapéu na cabeça, marca registrada sua, e decide me acompanhar até o portão onde me despeço.

Foi a última vez que vi o seu Joaquim Quinança. Ele faleceu no dia 15 de outubro de 2020 e a cidade chorou a partida de mais um pioneiro que ajudou a construir essa cidade. Mais que isso, seu Joaquim com sua bela história de amor, foi alguém que conferiu em silêncio um pouco de humanidade em todos nós, deixando lições de humildade, honestidade, honradez. Foi um semeador do bem.

Sua Páscoa definitiva ocorrida no Dia do Professor, de certa forma foi a data que o Pai Celeste escolheu para seu Joaquim homenagear as filhas que são professoras e zelosas cuidadoras de sua esposa. E lá está ele, no Alto, com um ramalhete de flores do campo a espera de sua adorada e sempre jovem Ignes. E de todos nós..., quando Deus assim permitir. 

Brasilândia/MS, 25 de Outubro de 2020.







[1] Quando chegou em Brasilândia (Foto de 1971, Cortesia da Profª. Cleonice)







[2] Missa das Bodas de Ouro (Foto de 2000, Cortesia da Profª. Cleonice).






[3] Bodas de Diamante (Foto de 2010, Cortesia da Profª. Cleonice)




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