quarta-feira, 2 de junho de 2021

 

Kit-Covid, a esperança que não cura (Parte 2)

Carlos Alberto dos Santos Dutra




O tema Kit-Covid abordado no artigo anterior observou que o governo federal em meio a crise do troca-troca de ministros da saúde e CPI contra o negacionismo e inércia oficial praticada no episódio das vacinas, sinalizou para a disponibilização deste composto também para as farmácias conveniadas do Programa Farmácia Popular do Brasil-PFPB. A história na verdade começa com o redirecionamento das linhas e objetivos deste programa.


O programa que havia sido criado com o intuito de ampliar o acesso a medicamentos no país, visando às condições de saúde mais prevalentes, e a parcela da população com menos recursos, em razão dos preços mais acessíveis e/ou gratuitos à população, durante muito tempo foi capaz de cumprir seu propósito, seguindo os preceitos dispostos na política nacional de assistência farmacêutica, e política nacional de medicamentos.(1)

Guardadas as críticas existentes sobre o direcionamento de recursos para o setor privado em detrimento do investimento público, observou-se, um grande volume de usuários atendidos e uma grande capilaridade do programa, por meio das unidades próprias e conveniadas em todo país .

No primeiro momento da pandemia de COVID-19, o programa das farmácias populares, coadunante com as regras de distanciamento social, se organizou para ampliar as quantidades de medicamentos autorizadas para dispensação, por paciente, e facilitou sua retirada por terceiros, visando diminuir a circulação de pessoas, principalmente aquelas pertencentes a grupo de risco. No entanto, em dezembro de 2020 é noticiada a possibilidade das farmácias populares dispensarem o Kit-Covid.

Não obstante, esta não foi a primeira vez que as farmácias populares desempenharam papel relevante durante emergências sanitárias. O fosfato de oseltamivir (Tamiflu), utilizado no tratamento da gripe H1N1, por exemplo, começou a ser dispensado pela rede pública em abril de 2010 (2). O Instituto de Tecnologia em Fármacos, da Fundação Oswaldo Cruz (Manguinhos/Fiocruz) foi o responsável pela produção do medicamento.

Na época, a partir do princípio ativo que o Ministério da Saúde tinha em estoque, todas as unidades próprias do programa - cerca de 530 à época - passaram a disponibilizar, no total, mais de 2 milhões de tratamentos a pacientes com sintomas de gripe (3). Desta forma o oseltamivir foi disponibilizado nas farmácias privadas conveniadas, com subsídios do governo.

Recorde-se que o Ministério da Saúde recomendou também às secretarias de saúde dos estados e municípios que descentralizassem os estoques do medicamento, de modo a proporcionar o acesso imediato (4). A indicação deste medicamento, então aprovado no país, contudo, alertava que deveria ser utilizado apenas em pacientes com quadro de doença respiratória grave, e nos quais o início dos sintomas tivesse ocorrido nas 48 horas anteriores.

Acontece que naquele momento havia início de pânico instaurado, potencializando a propaganda massiva do produto pela indústria. Deste modo, o oseltamivir, que posteriormente foi reconhecido pela comunidade científica como tendo eficácia modesta e limitada no combate ao H1N1, foi transformado em objeto de desejo de pessoas com quaisquer sintomas suspeitos, aumentando o volume de prescrições

Mas, e o Kit-Covid diante da pandemia? Perguntaram-se os defensores do tratamento precoce?

Diante da pandemia da COVID-19, explicam os pesquisadores, novamente aventa-se o uso das farmácias populares para promover a distribuição desses medicamentos. O que se configura temerário, pois além de não existirem evidências de benefícios de eficácia e segurança na doença em questão, há claras indicações de potenciais riscos. O uso de cloroquina e seus derivados pode levar ao agravamento de quadros de pacientes com doença cardíaca prévia (5), alertam. Somam-se assim novas questões, envolvendo a prescrição e a dispensação de medicamentos para uso não aprovado pelo órgão regulador, ampliando os riscos sanitários relacionados à pandemia.

Sob o aspecto médico-clínico-hospitalar, ressalve-se: admitiu-se, sim, o uso off-label (6) para a cloroquina e para a hidroxicloroquina, porém, no momento inicial da pandemia, quando ainda pairavam as hipóteses sobre sua eficácia na COVID-19. O conselho federal de medicina-CFM chegou a se posicionar positivamente apontando que o uso prescrito desses medicamentos contra a COVID-19 poderiam ser resultante de consenso entre médico e paciente (7).

Entretanto, esta posição ultimamente encontra-se seriamente abalada após a publicação de consensos de especialistas no Brasil e de estudos que apontam a falta de beneficio clínico destes medicamentos, aumentando o questionamento da persistência das prescrições e da dispensação destes medicamentos para a COVID-19 (1).

Em um cenário de pandemia, com incertezas que cercam o uso de medicamentos, a orientação farmacêutica correta se faz necessária mais do que nunca. O programa oficial Farmácia Popular, diferente do momento vivenciado pela epidemia de H1N1, está exclusivamente concentrado no comércio varejista de medicamento. Com o agravante de que nas farmácias privadas, a dispensação por vezes é executada por indivíduos sem capacitação técnica ou obrigação de prestar esclarecimentos e orientar sobre o uso racional de medicamentos (URM).

Deste modo, quais seriam os resultados esperados da oferta não monitorada de medicamentos do Kit-Covid sendo colocado livremente nas farmácias e drogarias ao alcance de uma população recordista em automedicação(8), como a brasileira? 

Perscrutando a resposta, tem-se a clara impressão de estarmos assistindo a subversão do papel das farmácias populares e drogarias em geral, pelo governo brasileiro, que parece colocar a agenda política à frente das prioridades sanitárias e do bem-estar da população.

Diante de notícia como esta: 'Maior parte dos que estão aqui na UTI tomaram Kit-Covid', diz chefe do Incor (9), que somente confirma o que os cientistas já haviam alertado, a preocupação persiste. Mas isto é assunto para o 3º e último artigo desta série sobre o tema.  

 

Brasilândia/MS, 02 de Junho de 2021.

 

Referências:

Foto: Felipe Mascari/Rede Brasil Atual. https://www.redebrasilatual.com.br/saude-e-ciencia/2020/07/kit-covid-criticado-especialistas/ acesso em 02.Jun.2021.

(1)- Disponível em https://www.scielo.br/j/csp/a/KbTcQRMdhjHSt7PgdjLNJyg/?lang=pt#, acesso em 02.Jun.2021.

(2)- Ministério da Saúde. Ministério da Saúde. Portaria nº 367, de 22 de fevereiro de 2010. Inclui o medicamento Fosfato de Oseltamivir no Programa Farmácia Popular do Brasil - Aqui Tem Farmácia Popular, e define os valores de referência para as suas apresentações. Diário Oficial da União 2010; 23 fev

(3)Fundação Oswaldo Cruz. Farmácia Popular oferece remédio contra gripe H1N1. Disponível em https://portal.fiocruz.br/noticia/farmacia-popular-oferece-remedio-contra-gripe-h1n1, acesso em 02.Jun.2021.

(4)- Organização Pan-Americana da Saúde. Ministério da Saúde informa que a utilização oportuna do oseltamivir reduz risco de óbito por influenza A (H1N1). Disponível em https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=3455:ministerio-da-saude-informa-que-a-utilizacao-oportuna-do-oseltamivir-reduz-risco-de-obito-por-influenza-a-h1n1-3&Itemid=812, acesso em 14.Dez.2020.

(5)- Borba MGS, Val FFA, Sampaio VS, Alexandre MAA, Melo GC, Brito M, et al. Effect of high vs low doses of chloroquine diphosphate as adjunctive therapy for patients hospitalized with severe acute respiratory syndrome coronavirus 2 (SARS-CoV-2) infection: a randomized clinical trial. JAMA Netw Open 2020; 3:e208857.

(6)-uso off label de um medicamento é feito por conta e risco do médico que o prescreve, e pode eventualmente vir a caracterizar um erro médico, mas em grande parte das vezes trata-se de uso essencialmente correto, apenas ainda não aprovado. Cf. https://sergiopontes.jusbrasil.com.br/artigos/623260364/o-que-sao-medicamentos-off-label-e-quando-seu-uso-e-possivel-segundo-o-stj#:~:text=O%20uso%20off%20label%20de,correto%2C%20apenas%20ainda%20n%C3%A3o%20aprovado, acesso em 02.Jun.2021.

(7)- Conselho Federal de Medicina. Parecer CFM nº 4/2020. Disponível em https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/pareceres/BR/2020/4, acessado em 16.Dez.2020.

(8)- Disponível em https://www.seesp.org.br/site/index.php/comunicacao/noticias/item/4150-je-mostra-que-brasil-o-campe-o-mundial-em-automedica-o, acesso em 02.Jun.2021.

(9)- ‘Maior parte dos que estão aqui na UTI tomaram Kit-Covid’, diz chefe do Incor, Revista VEJA- São Paulo, 29.Mai.2021.


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