domingo, 12 de junho de 2022

Aparecida Ofaié foi ao encontro do mar.

Carlos Alberto dos Santos Dutra














As águas do rio Paraná corriam mansas naqueles tempos de paz. Hanto-grê, sentada na proa do barco balança os pés sobre as águas na descontração da tarde. Perto dela brincam Sebastião, o filho mais velho, e o caçula Can-rê, conhecido pelos brancos por João Carlos. O mundo lhe parecia perfeito, mesmo que não se perguntasse muito sobre isso.

Leva a mão espalmada sobre olhos fixando mais amiúde o olhar que se irradia quando vislumbra entre as folhas da mata que contorna a curva do rio, o companheiro Cri-í, seu marido Eduardinho. E lá está ele coletando o roxinho e o taquari para a confecção de suas flechas e arcos que as constrói com esmero.

Maria Aparecida de Souza é todo sorriso e alegria. Desde que nascera no dia 27 de setembro de 1953, lá pelas bandas da Fazenda Esperança, acompanhou os passos do pai, Sebastião e da mãe Ana Maria, em suas andanças, varando cercas e fugindo do casco do boi e seu dono, mata adentro, cerrado afora.

Conhecer Eduardinho de Souza foi o que de melhor lhe acontecera na vida. Ele, hábil artesão, sempre estava sorridente, desde menino, quando, no dia 12 de fevereiro de 1943 encheu de alegria o pai, seu Paulino e dona Filomena, sua mãe. Depois de adulto, como pai e esposo, cercou-se sempre de uma vida simples e silenciosa, digna de um sábio que na arte do ofício extrai a beleza dos frutos que brotam da terra e dos ares.

Maria Aparecida contentava-se em passar o dia inteiro ao redor do fogo, tomando tererê ou mate, servindo à família, vendo os filhos crescer, mesmo que, sob a fumaça da casinha de sapé, construída com primor para agasalhar os sonhos de uma jovem mãe-mulher, de quando em vez tivesse de endurecer a verve frente aos desafios da vida tribal e o meio ambiente hostil envolvente.

O dia rapidamente declina e as crianças já não brincam mais na margem do rio. O dia esconde logo o seu brilho e o silêncio enche o ambiente com um tom sombrio
prenunciando um temporal. Rapidamente a mulher se transforma. Recolhe seus pertences, mas já não consegue ver quase nada do que restou de sua vida.

De súbito, as crianças somem. A mocinha que há pouco se encantava com seus rebentos, leva as mãos ao rosto e o que encontra são lágrimas. Leva as mãos ao peito e o que encontra são cicatrizes e dores.

Partiu Sebastião, seu primogênito, no dia 25 de janeiro de 1988, com 14 anos de idade, vítima de meningite tuberculosa. Partiu Eduardinho, seu amado companheiro, no dia 2 de fevereiro de 1999, com 55 anos de idade, vítima de doença neoplásica. Partiu João Carlos, Can-rê, condenado a prisão onde ficou distante de sua mãe por mais de dez anos antes de lá falecer... Partiu a aldeia Anodi para longe do rio, tocada pelas máquinas e a ganância civil, servil...

A anciã, que se tornara em segundos, olha a sua volta e percebe que não há mais nada a recolher. Uma espessa neblina cobre-lhe a visão. O barco debate-se vazio. No coração da mata, só o rufar do vento. E uma sensação de solidão toma-lhe o peito ferido pelas marcas do tempo.

Busca retornar à aldeia, vencendo a barranca do rio.
Mas suas pernas parecem-lhe fracas. Grita por socorro para que lhe ajudem a subir para a parte mais alta da margem do rio, onde ali encontrará amparo. Mas sua voz soa longe, longe, longe... Longe demais para o alcance da técnica, das cifras, do progresso... E da sensibilidade de seus pares.

Sente frio, sente-se sozinha. Esquecida naquele turbilhão de descaso, imagens e lembranças, só lhe resta a companhia do vento para acariciar-lhe a face e envolver-lhe os braços, o corpo inteiro e a alma. Impotente, sem forças para subir a barranca para retornar ao centro da aldeia que já foi sua, resigna-se, em silêncio.

Então, ela vira as costas para o mundo que lhe esqueceu. Olha para rio e contempla suas águas revoltas encrespadas pelo vento. O barco continua debater-se, como que resistindo a força que o domina. Corre os olhos sobre a popa – quantas vezes esteve ali sentada, sendo conduzida como uma deusa pelo seu amado, relembra. Depois, olha para a proa, quando um vigor teandrico a envolve e fortalece.

E decide soltas as amarras... Decide deixar livre aquele barco para que rume em direção ao mar. Vai com ele o espírito de seus antepassados. E remam firmes seus patrícios para o encontro com Agachô, o Deus criador Ofaié. --Leve também meus filhos, meu amado e também eu!, pede em silêncio Hanto-grê.

A visão, por causa do diabete, não lhe permite discernir direito, mas lhe parece que o barco enquanto se afasta, está cheio de luzes... E ela, uma espécie de santa, dentro dele segue, flutuando, através daquele rio encantado, parecido com o mar...

Maria Aparecida de Souza, Hanto-grê Ofaié nos deixou no dia 13 de junho de 2014, aos 60 anos de idade. 

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