domingo, 25 de junho de 2023

 

Diário de Axayray: Indigenismo e Missão entre os Ofaié.

Carlos Alberto dos Santos Dutra


 Num determinado ponto do planeta, mais visível na latitude 21° 14' 54.32’ S  e longitude 52° 7' 59.89’ W apontada pelo gps do Google, o dia corre comum, como qualquer outro na vida daquela pequena comunidade de pele escura e hábitos delicados. Katai[1] ergue os braços em direção à mãe Okuin-rê[2], que olha comprido para o filho e sorri. Ela passa a mão no cabelo levemente ondulado do filho e diz: Angaraí, mas he-tiú[3]. O clima está frio, e a aldeia Anodi vive agora tempos novos, sob uma leve brisa outonal que adentra a porta das casas pela estreita fresta do novo século e milênio que se aproximam. 

Os pés de marolo[4] são festejados pelos Katot[5] que invadem seus galhos em busca de alimento cada vez mais escasso no cerrado brasileiro, devido o avanço da cana-de-açúcar que parece sufocar a vida de qualquer aldeia. Ao longe, o eucalipto também os espreita. Cha-taí[6], um dos poucos não indígenas da aldeia, esposo de Okuin-rê[7], está na roça plantando Kotiá[8] e Heíet[9]. Perfeitamente integrado e aceito pela comunidade Ofaié, sente-se um deles, e tem que aproveitar a Fíie[10] que logo deve cair do céu, se Agachô[11] permitir, confia também o restante da aldeia. Noutros tempos o Paií[12] agitava o chocalho ao redor do cocho de Kauim[13] conversando com os deuses pedindo aquela dádiva dos céus para alegria das plantas. 

A filha caçula do casal, a Ortetô[14] Charâ-a[15], logo estará em casa retornando do colégio onde estuda e enfrenta os desafios da cidade. Na Ofaié E-Iniecheki, a escola da aldeia, os alunos estudam somente até a 4ª série. O professor Hang-tar-hec[16] se esforça em fazer o grupo reaprender a língua falada por seus pais, e os anima a falar o ofayé, ele que apreendeu com o pai, Ha-í[17] e o avô Chião[18], e que até bem pouco tempo manejava o arco com destreza e arte para a alegria de Oti-xô[19], antes de terminar os seus dias numa cadeira de rodas, acometido de um derrame que lhe paralisou o corpo. Apesar do descaso da educação com o ensino bilíngue isso ainda é um sonho para Xehitâ-ha, Teng-hô[20], Char-tã[21] e Hanto-grê[22]. 

A descrição de Axayray começa assim, mesclando palavras e nomes Ofaié como um desafio imposto ao autor de transferir esse saber ao leitor disposto com ele caminhar. Mais que isso, entende que algo possa ser extraído de proveitoso neste universo e relação havida entre o tempo e a história, relação estabelecida entre a atividade que exerceu como missionário e o aprendizado que recebeu daquele povo indígena. Algo como que contrariando a explicação dada por tantos pesquisadores e estudiosos, autoridades e governantes, de que os Ofaié tinham trilhado um caminho sem volta e que nada mais poderia ser feito para salvá-los das garras do latifúndio agressivo que tomou de assalto suas terras férteis das margens do rio Paraná, eis que eles se apresentam ternos e suaves, pelos caminhos da história. Não obstante, por trás, ao lado e à frente da luta dos povos indígenas, sempre houve quem os procurasse obstinadamente dizimá-los, como também houve quem procurasse protegê-los e promovê-los ao longo da margem direita deste rio que se parece com o mar, e que os Ofaié chamam de Keregawá-tá[23]. 

Ao mesmo tempo em que o autor arrisca ser criticado por especialistas da antropologia e linguística por narrar e grafar de forma leiga palavras em ofayé que ouviu ao pé do ouvido dos mais antigos e que aqui são citadas, sendo que muitos desses indígenas já morreram deixando um vazio enorme no peito do pesquisador e comunidade, busca com este texto caminhar no rumo que vai além das palavras. 

São apontamentos guardados em caixas, são vozes ainda retidas na memória, recolhidas amiúde pelo pequeno gravador e dezenas de fita k-7, hoje em desuso, mas cujo som ainda se impõe sobre a realidade que nos escapa como se tivessem vida própria, saltando para fora do baú do esquecimento, alimentando em nós o desejo de gritar e ir além da escrita, por atalhos e gritos sufocados que teimam em nos interpelar. 

A caneta desliza sobre o papel, e lá no pé da serra de Bodoquena (já no município de Porto Murtinho/MS), sob a luz da vela, lá está o missionário buscando chamar atenção sobre a importância e a riqueza desta língua e sua história para a sobrevivência de um povo, cujos remanescentes ainda hoje habitam o município de Brasilândia, em Mato Grosso do Sul. A língua ofayé[24], todos dizem e publicam, se encontra nos últimos estertores. 

Muito já foi dito e estudado, escrito e divulgado sobre a extinção física do povo Ofaié -- Darcy Ribeiro que o diga[25]. Mas sobre os últimos oito falantes da língua materna, classificada como pertencente ao tronco linguístico Macro-Jê, muito pouco se diz. Assim escrevem os especialistas e estudiosos da matéria, estruturalistas ou não, incapazes que somos para dar uma resposta mais consequente e que garanta o reconhecimento e a sobrevivência física e cultural deste povo. 

As duas filhas de Kiní-i, as pequenas Emilly e Kemilly, frutos da nomenclatura e hábitos contemporâneos deste mundo global, se encontram ao lado e envolvem num abraço carinhoso o dindo missionário, demonstrando confiança e prenúncio de esperança para o povo Ofaié. Ah! Como o tempo voa. A lembrança vai ao encontro do vento quando este povo se deixou conhecer, lá pelas bordas do Pantanal, no distrito de Morraria do Sul, num lugarejo chamado Tarumã. Lá num cantinho do mundo Reserva Kadiwéu adentro conhecido pelo nome de Vazantão: foi lá que este missionário e os Ofaié se deram a conhecer e foram, praticamente, redescobertos (...).

 

Fonte: DUTRA, C.A.S. Diário de Axayray – Indigenismo e Missão entre os Ofaié. Brasilândia/MS, Edição do Autor, 2021, pág. 7-10 (Introdução). Disponível em https://clubedeautores.com.br/livro/diario-de-axayray

 



[1] - Katai é o nome do Ofaié Carlos.

[2] - Okuin-rê é o nome Ofaié de Joana.

[3] - Está tudo bem, mas está frio, no idioma ofayé.

[4] - Araticum do mato.

[5] - Periquito, no idioma ofayé.

[6] - Nome em ofayé do senhor Osmar.

[7] - Nome em ofayé da Srª Joana.

[8] - Arroz no idioma ofayé.

[9] - Feijão no idioma ofayé.

[10] - Chuva no idioma ofayé.

[11] - Deus criador do povo Ofaié.

[12] - Equivalente ao Xamã, rezador dos Ofaié.

[13] - Milho fermentado usado nas festas dos Ofaié, equivalente à Chicha cultuada pelos Guarani.

[14] - Menina na língua ofayé.

[15] - Nome ofayé da menina Luciana

[16] - Nome ofayé do Prof. Silvano.

[17] - Nome ofayé de Severino.

[18] - Nome ofayé de Tomé.

[19] -Oti-xô é o nome Ofaié de  Arlindo.

[20] - Nome de Neuza, que quer dizer lugar distante, na língua ofayé.

[21] - Nome ofayé da pedagoga Marilda.

[22] - Nome ofayé da artesã Aparecida.

[23] - Nome dado ao Rio Paraná pelos Ofaié.

[24] - O autor grafa Ofaié (com i), quando se refere ao povo (como consta nos escritos históricos e antropológicos dos viajantes, naturalistas e expedições que descreveram estes indígenas a partir do século XIX), e grafa Ofayé (com y), quando se refere à língua falada por esta comunidade indígena (como pregam pesquisadores e linguistas hodiernamente).

[25] - A língua Ofaié está salva! escreveu Ribeiro, Darcy. Confissões. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 171.

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