segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

 

Uma toyota e a velha estrada do Porto

Carlos Alberto dos Santos Dutra







Pois foi refletindo as palavras da professora Floriana Débora Ladeia sobre a velha estrada do Porto, o nosso saudoso Porto João André, que decidi deitar sobre o papel essas lembranças...

E lá estava aquela professora rememorando suas vivências por lá – que foram intensas --, observa ela, tamanho os sonhos que ainda a perseguem e rondam sua noite fazendo-a tocar de leve nas águas do lago que aos poucos, no breu de uma ilusória noite, vai secando, fazendo emergir novamente a antiga estrada de chão, por onde seus pés muito firmes, um dia, por ali trilharam...

Quem não teve uma dessas experiências intensas ao longo dessa lendária estrada? Quem não carrega até hoje, na algibeira dos anos, uma lembrança, uma recordação, quiçá uma saudade? Nos faltariam palavras para descrever uma a uma essas experiências vividas naquele trecho de menos de vinte quilômeros, mas que pareciam uma eternidade de distância para quem o trilhava a pé ou se apressava para alcançar a balsa prestes a partir, para não perder a aula no outro lado do rio.

A antiga MS-040, com a chegada da hidrelétrica de Porto Primavera, ganhou asfalto e transformou-se. Foi reconhecida pelo Estado, quando o governador André Puccinelli, a pedido do Instituto Cisalpina, sancionou a Lei 3.430/2007 denominando-a Rodovia Luigi Cantone. Agora, federalizada, ela se chama BR-158.

De minha parte, arrisco confrontar um pequeno episódio de minha história com às demais que, creio, sejam muitas e mais antigas que a minha. Não, porém menos importante. Mas, com certeza, de elevado valor e estima para este escrevinhador.

Corria os anos 1986 e seguintes, e lá se encontrava o indigenista varando aquela estrada no rumo das terras próximas à sede da fazenda Cisalpina onde os indígenas Ofaié se encontravam. Prestavamos nesta época, trabalho assistencial voluntário, graças ao apoio da Igreja, através do CIMI, e o prestimoso zelo de D. Izidoro Kosinski, bispo de Três Lagoas; do pároco de Brasilândia, padre Lauri Vital Bósio, e da irmã Nair Ribeiro Cardoso, da CPT, que dava apoio aos ribeirinhos da região.

Naquele dia acompanhava o missionário a combativa professora Márcia Nakamura, que lecionava a disciplina de História na Escola Estadual Adilson Alves da Silva, e foi uma das pioneiras docentes a abraçar a causa indígena e a luta pela terra nesta região, quando os Ofaié haviam recém retornado à sua terra natal e se encontravam acampados na margem do rio Paraná.

A tarde já declinava, mas o murmúrio das águas, a roda de conversa com os indígenas  e os últimos preparativos para deixar a aldeia, sob as sombras dos pés de mangas próximos à balsa para Paulicéia através do chamado Porto Cisalpina, tudo fazia com que nos alongássemos no tempo e nos desapercebêssemos da chuva que principiava.

Entre uma conversa aqui e outra acolá com aquela comunidade carente e gentil que soerguia-se das cinzas depois de um longo desterro, o tempo voou. Quando vimos, a noite nos empurrou para a estrada.

No trajeto de retorno, depois de vencer os cinco quilômetros iniciais de chão, deixamos para trás o Posto da Receita Estadual (Exatoria) próximo ao ponto de embarque para a balsa de Panorama; o bar e restaurante da Mamãe Dolores; a Escola Antônio Henrique Filho; o Bar do Chicão (Francisco Alves); o Posto de Saúde, a antiga capelinha Nossa Senhora das Graças, entre outros. Dobramos à direita e seguimos em direção à escuridão no rumo de Brasilândia.

O melhor carro do mundo, naquele tempo, aquela toyota, nunca foi de empatar viagem de ninguém e, muito menos, deixar motorista ou passageiro na mão. Sempre dobrou com valentia e segurança aquele trajeto: de areião, no tempo seco; e de lamaçal, no tempo de chuva. 

Mesmo tendo ao seu volante, na época, o valoroso auxiliar Amaral Adriano Alves, nunca desprezou caroneiros, acolhendo-os a todos e os transportanto na boleia, num tempo quando isso ainda era permitido e andávamos a uma velocidade máxima de 60 km por hora. E mesmo assim acidentes aconteciam.

Pois foi o que ocorreu naquela noite. A forte chuva que caiu durante a tarde prolongou-se até altas horas jorrando aos cântaros, fazendo com que a estrada, literalmente, se transformasse num mar de água. 

Ao passar num boeiro, muito próximo ao barranco, ao tentar desviá-lo... E pronto: lá se foi a toyota pro brejo inclinando a roda dianteira que precipitou-se sobre um buraco e por pouco não tombou.

Aquela estrada, depois das dez horas da noite, naquele tempo tornava-se solitária e isolada do mundo. Após a última balsa chegar de Panorama ou Paulicéia, não havia mais qualquer movimento naquele trecho, o que resultava um desvão perdido desprovido de qualquer viva alma.

A chuva havia cessado e, avaliando a distância que já tínhamos percorrido e o que ainda faltava para chegar, decidimos seguir a pé em direção à vila de Brasilândia. Abandonamos o veículo e caminhamos a esmo na escuridão, sem qualquer farolete, em busca de socorro. Iluminados somente por uma réstia de lua teimosa que insistia em nos fazer companhia. Só por Deus.

Felizmente, depois de andar por mais de duas horas e vencer todo o temor de sermos atacados por uma onça ou pisar na cabeça de uma cobra sucuri, avistamos luzes. O sitio que nos acolheu foi de um senhor chamado Irineu de Souza Brito, que nos deu guarida e onde passamos o resto daquela noite em segurança.

No dia seguinte, com o apoio de uma camionete (José Vicente de Lima, nos recorda a professora), e outro sitiante vizinho, João Garcia Martinez, popular João Fininho nos dirigimos até o local para resgatar a toyota do meio do varjão da Cisalpina. Habituado a socorrer veículos nos dias de chuva, ele providenciou uma corda tracionando a toyota que logo aprumou e se apresentou em forma, pronta para outra aventura...

Essa era a velha estrada do Porto que ainda vive na memória de todos os brasilandenses raiz desta terra. São histórias de encontros e partidas; aventuras e desventuras; tristezas e alegrias; lágrimas e sorrisos. Estrada que pavimentou a trajetória de muitos professores, estudantes, comerciantes, pescadores, agricultores e pecuaristas, cidadãos e cidadãs que escreveram a história de suas realizações e sucesso pisando firme sobre o chão desta estrada. Obrigado estrada velha do Porto João André.  

 

Brasilândia/MS, 06 de fevereiro de 2023.





Velha estrada do Porto João André:












Embarque na Balsa do Porto João André:














Padre Lauri e D. Izidoro com os indígenas Ofaié:


Nenhum comentário:

Postar um comentário