Uma toyota e a velha estrada do Porto
Carlos Alberto dos Santos Dutra
Pois foi refletindo as palavras da professora Floriana Débora
Ladeia sobre a velha estrada do Porto, o nosso saudoso Porto João
André, que decidi deitar sobre o papel essas lembranças...
E lá estava aquela professora rememorando suas
vivências por lá – que foram intensas --, observa
ela, tamanho os sonhos que ainda a perseguem e rondam sua
noite fazendo-a tocar de leve nas águas do lago que aos
poucos, no breu de uma ilusória noite, vai secando, fazendo emergir novamente a antiga
estrada de chão, por onde seus pés muito firmes, um dia, por ali trilharam...
Quem não teve uma dessas experiências intensas
ao longo dessa lendária estrada? Quem não carrega até hoje, na algibeira dos anos, uma lembrança,
uma recordação, quiçá uma saudade? Nos faltariam palavras para descrever uma a
uma essas experiências vividas naquele trecho de menos de vinte quilômeros, mas
que pareciam uma eternidade de distância para quem o trilhava a pé ou se
apressava para alcançar a balsa prestes a partir, para não perder a aula no
outro lado do rio.
A antiga MS-040, com a chegada da hidrelétrica
de Porto Primavera, ganhou asfalto e transformou-se. Foi reconhecida pelo
Estado, quando o governador André Puccinelli, a pedido do Instituto
Cisalpina, sancionou a Lei 3.430/2007 denominando-a Rodovia Luigi
Cantone. Agora, federalizada, ela se chama BR-158.
De minha parte, arrisco confrontar um pequeno
episódio de minha história com às demais que, creio, sejam muitas e mais
antigas que a minha. Não, porém menos importante. Mas, com certeza, de elevado
valor e estima para este escrevinhador.
Corria os anos 1986 e seguintes, e lá se encontrava o
indigenista varando aquela estrada no rumo das terras próximas à sede da
fazenda Cisalpina onde os indígenas Ofaié se encontravam. Prestavamos nesta
época, trabalho assistencial voluntário, graças ao apoio da Igreja, através do
CIMI, e o prestimoso zelo de D. Izidoro Kosinski, bispo de Três
Lagoas; do pároco de Brasilândia, padre Lauri Vital Bósio, e
da irmã Nair Ribeiro Cardoso, da CPT, que dava apoio aos
ribeirinhos da região.
Naquele dia acompanhava o missionário a
combativa professora Márcia Nakamura, que lecionava a disciplina de
História na Escola Estadual Adilson Alves da Silva, e foi uma das pioneiras
docentes a abraçar a causa indígena e a luta pela terra nesta região, quando os
Ofaié haviam recém retornado à sua terra natal e se encontravam acampados na
margem do rio Paraná.
A tarde já declinava, mas o murmúrio das águas,
a roda de conversa com os indígenas e os últimos preparativos para
deixar a aldeia, sob as sombras dos pés de mangas próximos à balsa para Paulicéia através do chamado Porto Cisalpina, tudo fazia com que
nos alongássemos no tempo e nos desapercebêssemos da chuva que principiava.
Entre uma conversa aqui e outra acolá com aquela
comunidade carente e gentil que soerguia-se das cinzas depois de um longo
desterro, o tempo voou. Quando vimos, a noite nos empurrou para a estrada.
No trajeto de retorno, depois de vencer os cinco
quilômetros iniciais de chão, deixamos para trás o Posto da Receita Estadual
(Exatoria) próximo ao ponto de embarque para a balsa de Panorama; o bar e
restaurante da Mamãe Dolores; a Escola Antônio Henrique Filho; o Bar do Chicão
(Francisco Alves); o Posto de Saúde, a antiga capelinha Nossa Senhora das
Graças, entre outros. Dobramos à direita e seguimos em direção à escuridão no
rumo de Brasilândia.
O melhor carro do mundo, naquele tempo, aquela toyota, nunca foi de empatar viagem de ninguém e, muito menos, deixar motorista ou passageiro na mão. Sempre dobrou com valentia e segurança aquele trajeto: de areião, no tempo seco; e de lamaçal, no tempo de chuva.
Mesmo tendo ao seu volante, na
época, o valoroso auxiliar Amaral Adriano Alves, nunca desprezou
caroneiros, acolhendo-os a todos e os transportanto na boleia, num tempo quando
isso ainda era permitido e andávamos a uma velocidade máxima de 60 km por hora.
E mesmo assim acidentes aconteciam.
Pois foi o que ocorreu naquela noite. A forte chuva que caiu durante a tarde prolongou-se até altas horas jorrando aos cântaros, fazendo com que a estrada, literalmente, se transformasse num mar de água.
Ao passar num boeiro, muito próximo ao barranco, ao tentar desviá-lo... E pronto: lá se foi
a toyota pro brejo inclinando a roda dianteira que
precipitou-se sobre um buraco e por pouco não tombou.
Aquela estrada, depois das dez horas da noite,
naquele tempo tornava-se solitária e isolada do mundo. Após a última balsa
chegar de Panorama ou Paulicéia, não havia mais qualquer movimento naquele
trecho, o que resultava um desvão perdido desprovido de qualquer viva alma.
A chuva havia cessado e, avaliando a distância
que já tínhamos percorrido e o que ainda faltava para chegar, decidimos seguir
a pé em direção à vila de Brasilândia. Abandonamos o veículo e caminhamos a
esmo na escuridão, sem qualquer farolete, em busca de socorro. Iluminados
somente por uma réstia de lua teimosa que insistia em nos fazer companhia. Só
por Deus.
Felizmente, depois de andar por mais de duas horas e
vencer todo o temor de sermos atacados por uma onça ou pisar
na cabeça de uma cobra sucuri, avistamos luzes. O sitio que nos
acolheu foi de um senhor chamado Irineu de Souza Brito, que nos deu
guarida e onde passamos o resto daquela noite em segurança.
No dia seguinte, com o apoio de uma camionete (José Vicente de Lima, nos recorda a professora), e outro sitiante vizinho, João Garcia Martinez, popular João
Fininho nos dirigimos até o local para resgatar a toyota do
meio do varjão da Cisalpina. Habituado a socorrer veículos nos dias de chuva, ele providenciou uma corda tracionando a toyota que
logo aprumou e se apresentou em forma, pronta para outra
aventura...
Essa era a velha estrada do Porto que ainda vive na memória de todos os
brasilandenses raiz desta terra. São histórias de encontros e
partidas; aventuras e desventuras; tristezas e alegrias; lágrimas e sorrisos.
Estrada que pavimentou a trajetória de muitos professores, estudantes,
comerciantes, pescadores, agricultores e pecuaristas, cidadãos e cidadãs que
escreveram a história de suas realizações e sucesso pisando firme sobre o chão
desta estrada. Obrigado estrada velha do Porto João André.
Brasilândia/MS, 06 de fevereiro de 2023.
Velha estrada do Porto João André:
Embarque na Balsa do Porto João André:
Padre Lauri e D. Izidoro com os indígenas Ofaié:
Nenhum comentário:
Postar um comentário