sábado, 14 de setembro de 2024

 

As eleições, as ideologias e a asa quebrada

Carlos Alberto dos Santos Dutra



Ela sempre teve orgulho de suas asas. Fortes e majestosas, aqueles braços lhe permitiam equilíbrio ao voar. Onde quer que seus sonhos a levassem, lá estavam eles e suas plumas, lhe garantindo chegar lá.

Embora destoassem na cor e por vezes divergissem nos motivos e alinhamento, ainda assim seguiam em frente, dando rumo ao trajeto planejado. Tinha convicção de que era importante para a sobrevivência e o voo daquele pássaro-cidade que empreendia a missão de semear esperança aos que se encontravam abaixo e lhe acenavam.

Nos últimos anos, entretanto, uma dessas asas foi perdendo o vigor, sentindo-se mais fraca, a ponto de tornar impossível o prazer de voar.  Padecendo de uma fragilidade sistêmica, a capilaridade foi escasseando, e aos poucos foi secando, a ponto de quebrar ao menor movimento.

Foi o que bastou para comprometer a dinâmica do voo, fazendo com que as asas da felicidade andassem em desalinho, por vezes em círculo, desnorteadas, precipitando-se sobre os penhascos, ou dando voos rasantes em campo aberto até chocar-se contra os arbustos.

A alegoria apresentada acima serve para demonstrar, de forma singela, o quão importante é o equilíbrio das forças políticas e as ideologias que norteiam uma administração pública. Ainda que distintas, na condução e governança de uma Cidade, de um Estado, ou de um País, elas representam as pilastras da Democracia. Seja na composição de seus ministérios e secretariados, seja na representação dos diversos segmentos sociais no corpo  legislativo de seus parlamentos.

Em nível local, nas eleições municipais que se aproximam, impossível não perceber o que facilmente o olhar paulofreiriano de um pedagogo poderá constatar. Ou seja, o voo da Democracia, por estas terras, voa com dificuldade, pois está com uma de suas asas quebrada.

Isso porque nem todos os setores e forças políticas partidárias se fazem representar no certame. Não há como não perceber uma lacuna e ausência de representação no tecido social do campo da esquerda entre os 49 candidatos que concorrem às eleições proporcionais do dia 6 de outubro próximo.

Para uma cidade que já elegeu Vereadores, Vice-prefeito e Prefeito, notadamente do campo da esquerda, por exemplo, não apresentar nenhum nome, sequer para à Câmara Municipal, sinaliza debilidade, quando não, descrédito no pensamento daqueles que militam os movimentos sociais, sindicatos e associações que postulam espaço, onde todos possam participar, mormente os segmentos organizados e propositivos da sociedade.

Os sintomas deste pássaro ferido de morte, entretanto, não nasceu hoje. Tendência que começou já há alguns anos, nas eleição de 2016, a última com a participação do Partido dos Trabalhadores  (que elegeu apenas 1 vereador), pode ser citada como um exemplo disso. Foi a partir desta época – com o declínio de Dilma, do PT e a ascensão de Temer, do MDB --,  que as demais siglas de centro e de direita começaram a ampliar seus espaços e influência sobre o eleitorado brasileiro e, por conseguinte, também o brasilandense: PSDB, PP, PDT, PEN, DEM, e PROS que elegeram naquele ano 1 vereador cada, e o MDB elegendo 2 vereadores.

Nos anos que se seguiram, a pluralidade partidária permaneceu cada vez mais reduzida por aqui. Em 2020, nas proporcionais, elegeram-se 3 do MDB, 2 do DEM, 2 do PSDB, 1 do PODE e 1 do PSD. Embora a ideologia da chamada esquerda nunca tenha sido o forte nestas terras, há de se lembrar que a partir de 1988 ela começou a ter representatividade, predominantemente pelo PT em Brasilândia. Período em que foram lançadas as primeiras sementes e possibilidades para a construção de uma cultura mais crítica frente às administrações públicas que se sucederam.

Os mais antigos ainda guardam na memória quando, naquele ano histórico, o saudoso Joélio dos Santos Lima disputou a Prefeitura de Brasilândia, pelo Partido dos Trabalhadores, numa acirrada disputa com José Cândido da Silva, pelo PTB, que foi eleito, e Patrocínio de Souza Marinho, pelo MDB, que ficou em segundo lugar. Foi o ano também que Brasilândia inscreveu o seu maior número de candidatos a Vereador: 71, sendo que 11 desses candidatos pertenciam ao PT.

Depois de 21 anos de ditadura militar, impossível não festejar e abrir as asas da liberdade nas disputas eleitorais pelo interior do Brasil afora. Após a morte de Tancredo e a promulgação em 5 de outubro de 1988, da Constituição Cidadã, por Sarney, a redemocratização tomou corpo no Brasil inteiro. E as liberdades individuais passaram a ser reconhecidas como um direito de todos, sobretudo das agremiações partidárias e organismos sociais.

Liberdade que garantiram às asas do pássaro-cidade de nossa parábola, poderem voar alto, livres e até onde a vista alcançasse. Ano em as ideias puderam serem apresentadas no rosto dos pioneiros da esquerda de Brasilândia daquela época: Irineu, Raul, São Paulino, Zé Bigode, Jair Cecílio, Maria da Glória, Maria da Graça, Dalvina, Amaral, Luiz Veiga, Jorge Vieira, e os demais que se seguiram. Todos eles permanecem como fonte de inspiração para os novos candidatos, suas bandeiras e causas. Porque hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás.

Reviver, ressignificando esse tempo, quiçá em pensamento,  ainda é preciso. Sonhos comprometidos com a justiça social que voem alto, independente do alinhamento e envergadura de suas asas: isso é tudo o que precisa nosso pássaro-cidade para manter-se em equilíbrio, dando oportunidade e proteção a todos, para além do horizonte dos sonhos e seus planos de governos.

Brasilândia/MS, 14 de setembro de 2024.

 

Fonte: Dutra, C.A.S. História e memória de Brasilândia/MS, Volume 5-Poderes, Brasilândia, 2022, pág. 153s. Disponível: História e Memória de Brasilândia/MS Volume 5 - Poderes, por Carlos Alberto dos Santos Dutra - Clube de Autores 

Lula entrevista Irineu Brito. Cf. https://www.youtube.com/watch?v=D0WYZVMN6hs

Foto: Criança, indígena, negro, mulher, operário e pessoa com deficiência: quem são as pessoas que passaram a faixa para Lula | Brasil 247 

Sobre a frase atribuída a Che Guevara Cf. https://veja.abril.com.br/coluna/cacador-de-mitos/as-frases-que-eles-nao-disseram

 

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