quinta-feira, 5 de setembro de 2024

 

Juntos e Misturados, um novo jeito de ser Ofaié

Carlos Alberto dos Santos Dutra


 









A antropologia sempre buscou entender a partir de seus contextos as diferenças havidas entre os povos, desde Malinowski, classificando os povos, ou pela língua, com o auxílio da linguística, ou pelo grau de integração e ocupação de seus territórios ao longo do tempo, sob o olhar da história e da geografia social, e outras disciplinas afins.

Ambas as ciências, contudo, são unânimes em considerar os povos originários como fruto de uma cultura milenar, consuetudinária e que se perpetuou séculos afora, desafiando impérios que os subjugaram com a chegada dos chamados desbravadores, descobridores e senhores do mar e o hálito de pólvora dizimador.

A sobrevivência dos povos originários em terra brasili, portanto, só foi possível através da fuga das dadas de caça ao bugre embrenhando-se nos matos. Os que ousaram enfrentar a ambição bandeirante escravocrata que fazia o trajeto Tietê, Paraná e Pardo em direção às minas de Cuiabá, seus corpos, suas flechas e suas almas não empecilho  para o extermínio de mais de cinco milhões de indígenas e os mais de 200 dialetos diferentes que aqui viviam.

Hoje, num pontinho minúsculo do imenso e incandescente cerrado sul-mato-grossense, eis que um destes grupos sobreviventes ergue os braços e a voz para fazer chegar o seu canto e grito, antes de AGANIÍE e hoje de VITÓRIA, até o mais longínquo dos rincões. 

O olhar para o alto, no horizonte, e o peito ereto, prenhe de dignidade. E o cocar na cabeça de uma mulher indígena. Eis a imagem e o símbolo moderno da resistência Ofaié. E lá está ela, como se num turbilhão de vozes que representa: semeia e enche, com orgulho, os pulmões da mata, inspirando o aroma e sabor que vem do alto, de AGAXOUW, e que lhe diz: juntos e misturados, você chegou aqui!

Foi como se uma réstia de luz do passado pairasse sobre os rios, campos e matas, refletindo corpos rijos e passos firmes de antigos guerreiros, conselheiros e lideranças de outrora, sempre com pressa, descortinando caminhos, nos desvão da sorte, driblando a morte, lhes inflamando a alma. Tudo lhes dá força para festejar.

Juntos e misturados foi o jeito que essa comunidade sobrevivente encontrou para celebrar a marca que lhe devolveu a vida e a esperança depois do desterro. Afinal, foram anos de convivência forçada com os patrícios Guarani que os Ofaié foram contornando, a semelhança de um rio, a lembrança dos encontros belicosos narrados pelos mais antigos.

E assim foram superando, em silêncio, a dor de ver seus filhos, aos poucos, sendo raptados por bugreiros, sertanistas e tribos hostis que levavam suas crianças para o curral dos senhores das vilas e fazendas, transformando-os em trabalhadores braçais, apagando em cada um deles a memória de seus pais.

Juntos e misturados foi o jeito que essa comunidade Ofaié sobrevivente encontrou para celebrar a vitória. E lá estão eles transformando e ressignificando a resiliência que carregou no bornalzinho JACÁ, desde quando deixou Bodoquena e a Reserva Kadiwéu. 

Vencendo distâncias, a pé e de trem, no rumo do ribeirão Boa Esperança e córrego Sete, eis que eles voltavam para sua terra natal, Brasilândia/MS, de onde a remoção forçada promovida pela FUNAI, em 1978, os apartou de vez de seu território, enchendo de lágrimas os seus rostos.

Foi a partir deste retorno, portanto, que a esperança viu reacender a brasa que nunca adormeceu. Vento que nunca deixou de soprar sobre o seu toco de vela de ZÉ TÁ, de  ALFREDO, TOMÉ e ATAÍDE, de terna lembrança. 

Graças a eles o bastão da corrida foi sendo repassado às gerações seguintes, despertando nos mais jovens a mesma coragem de seus ancestrais para continuarem a luta e com força para vencer.

E lá estão eles e elas, estirando seus arcos, manejando a lança, confeccionado seus colares, pintura e bordados, com a mesma ciência e arte de um PEREIRINHA e ARÊ; de EDUARDINHO e APARECIDA, e outros hábeis artesãos.

E lá estão elas e eles, redesenhando a história, através de figuras num pedaço de papel, JOÃO CARLOS, ARLINDO, MARCOS, SEBASTIÃO, JOSÉ, e tantas outras mulheres como MARILDA, ensinando, ensinando, ensinando estudantes não índios a serem mestres e doutores do jeito de ser Ofaié.

Juntos e misturados, representa ponto de chegada para a comunidade Ofaié e Guarani que convive hoje em harmonia na Aldeia ANODHI. Uma caminhada construída por mãos muito jovens, o que representa alento e esperança. E lá estão SILVANO, ELIZÂNGELA, JOSÉ, RAMONA, ROSALINA, e tantos outros professores, que semeiam flores de saber indígena ao redor da escola Ofaié E-INIECHEKI, repleta de práticas inovadoras, métodos criativos, gestos inclusivos e pedagogia multicultural.

Festejar o Junto e misturados somos mais fortes, e o Dia da Resistência Ofaié, na aldeia ANODHI, no dia de hoje, pode ter muitos outros significados que perpassam a alma deste povo que festeja com jogos, danças, palestras, e feira de artesanato. 

O atual cacique MARCELO tem razões de sobra também para comemorar esta data juntamente com os amigos e parceiros atuais -- SESAI, FUNAI, Prefeitura Municipal, Estado de Mato Grosso do Sul, UFMS e parceiros mais antigos, naqueles tempos de chumbo quando todos negavam estender a mãos ao índio.

CIMI, ADVENIAT, OXFAM, CEDAMPO,  e agora, empresas mais recentes como a FIBRIA, hoje SUSANO entre outras tantas solidárias à trajetória dos Ofaié. 

O significado maior que embevece a todos, em especial a este escrevinhador AXAIRAI, sem dúvida, é o novo jeito de ser do povo Ofaié que neste evento reafirma a máxima: Sou o que sou, sem deixar o que foram meus ancestrais

Parabéns comunidade OFAIRANI.

Brasilândia/MS, 5 de setembro de 2024.



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