sábado, 29 de maio de 2021

 

Kit-Covid e a esperança que não cura (Parte 1)

Carlos Alberto dos Santos Dutra



O uso do chamado Kit-Covid e seus componentes, todos sabemos é usado regularmente nas redes públicas de saúde hospitalar no tratamento sintomático desta virose. Assim como a maior parte dos 79 municípios do Estado e os 5.570 municípios do restante do País, Brasilândia se inclui entre eles sendo usado com as devidas precauções e responsabilidade médica. 

É sabido, entretanto, que a venda de alguns dos componentes deste Kit, por motivações pretensamente preventivas, também é realizada em farmácias e drogarias, colocando-o ao alcance do cidadão comum que, mesmo sem saber, se automedica, agradece e se acha protegido.

A falácia, entretanto começou há um ano quando a infecção pelo SARS-CoV-2, em número cada vez mais crescente, ceifava vidas diuturnamente e as redes de saúde pública se viam às voltas com as dificuldades relacionadas ao desconhecimento do modus operandi do vírus e o manejo da doença, ainda sem tratamento eficaz disponível.

Desde o início da pandemia, muitos medicamentos já utilizados em outras doenças foram propostos como possibilidades terapêuticas contra Covid-19,  os chamados medicamentos reposicionados, entre eles a cloroquina e seu derivado, a hidroxicloroquina, a ivermectina, a nitazoxanida, o remdesivir e a azitromicina.

O Presidente, transformado em garoto propaganda foi um deles que saiu à TV anunciando o paliativo para combater o vírus que chamou, depois, de gripezinha. Entretanto, um ano após o início da pandemia, não há evidências científicas que respaldem o uso dessas substâncias na prevenção ou tratamento da Covid-19. Mesmo assim elas continuaram a ser usadas.

O artigo O 'Kit-Covid' e o Programa Farmácia Popular do Brasil, publicado nos Cadernos de Saúde Pública, da Revista SciElo Brasil, em 22.Fev.2021, ao qual nos reportamos, assevera que num primeiro momento, os países viram em alguns desses medicamentos uma esperança de cura, hoje os descartaram de seus protocolos (1).

Ainda em junho de 2020, porém, o governo dos Estados Unidos já havia suspendido a autorização de uso emergencial que permitia que o fosfato de cloroquina e o sulfato de hidroxicloroquina fossem utilizados para tratar pacientes hospitalizados com Covid-19, fora de ensaios clínicos. O comunicado emitido pela Agência Americana de Administração de Alimentos e Medicamentos (FDA), dizia que os eventuais benefícios atribuídos à cloroquina e hidroxicloroquina não compensavam os riscos conhecidos de seu uso.

Recentemente um grupo de pesquisadores, entre eles Cláudia Du Bocage Santos-Pinto, do Instituto Integrado de Saúde, aqui do Mato Grosso do Sul (UFMS), mencionam que mesmo diante deste cenário, a postura adotada pelo governo brasileiro foi a de incentivar a utilização dos medicamentos, dando à cloroquina e à hidroxicloroquina status de “bala de prata” contra a Covid-19. Protocolos do Ministério da Saúde, ainda vigentes, incluem estes medicamentos como indicações para o manejo de pacientes com sintomas leves, moderados e graves, e nas diversas fases de evolução da doença (2).

Desnecessário dizer que a promoção do uso de cloroquina e hidroxicloroquina trouxeram consequências diversas. Desde o campo da política até a seara médica; desde o campo farmacêutico ao mundo dos negócios da indústria da saúde. Só para se ter ideia, uma pesquisa do Conselho Federal de Farmácia (CFF) comparou as vendas de medicamentos e suplementos alimentares, de janeiro a março de 2019, com as de 2020, mostrando um aumento de 68% nas vendas de hidroxicloroquina nesse período. Em decorrência, foi observada escassez generalizada do medicamento nas farmácias, prejudicando pacientes que dele dependiam para outras condições de saúde.

No campo da geopolítica e logística, aconteceu o mais intrigante. Foi quando, no final de maio de 2020, o Governo Federal anunciou o recebimento de uma doação dos Estados Unidos de cerca de dois milhões de doses de hidroxicloroquina (3). Paradoxal e curiosamente a doação coincidiu com o anúncio do abandono do uso desse medicamento para tratamento da Covid-19 nos Estados Unidos. Benfazeja, a doação foi recebida pelo Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército, e se somou ao quantitativo já produzido pelo órgão.

Esse investimento do governo brasileiro na produção de cloroquina se tornou alvo de investigação por parte do Tribunal de Contas da União (TCU), e também de questionamento pela Câmara dos Deputados, em função do montante gasto na produção de um medicamento sem comprovação científica para Covid-19, o que poderia ferir o princípio da eficiência na administração pública.

Não seria de se duvidar que no Relatório que analisou padrões de desinformação entre países durante a pandemia mostrou, por meio de análises hipergeométrica e qualitativa, que o Brasil é o país que mais se destaca no que diz respeito à desinformação relacionada a medicamentos

Negacionistas e como se nada soubessem, a cloroquina e hidroxicloroquina continuam sendo mencionados como possíveis tratamentos ao longo da pandemia, indicando que as evidências científicas não estão sendo adequadamente captadas pelo debate público brasileiro, observaram os pesquisadores.

O artigo continua, constatando uma triste realidade: Tal fato tem forte relação com o posicionamento de autoridades e órgãos governamentais, como o próprio Ministério da Saúde, mostrando a desinformação como tática intimamente ligada às disputas políticas internas no país. A defesa do tratamento precoce, baseado em cloroquina e hidroxicloroquina e outros medicamentos, tornou-se, no Brasil, símbolo do viés político no enfrentamento da epidemia.

A alternativa dada pelo governo perpassa a disponibilização do dito Kit-Covid em unidades básicas de saúde, o que foi adotado em alguns municípios brasileiros, alinhados com a premissa do Governo Federal. O Kit-Covid consiste em uma variação de combinações que incluem, invariavelmente, a cloroquina, hidroxicloroquina, a azitromicina, a ivermectina, e mais outros medicamentos, a depender da localidade. 

Agora, o Governo Federal sinaliza para a disponibilização do Kit-Covid também nas farmácias conveniadas do Programa Farmácia Populares do Brasil-PFPB (4). Mas sobre essa história falaremos no próximo capítulo.

Brasilândia/MS, 29 de maio de 2021.

 

Referências:

Foto: Edu Andrade/O Estadão, 10.Out.2020

(1)- Autores do Artigo: Cláudia Du Bocage Santos-Pinto, do Instituto Integrado de Saúde, UFMS, Campo Grande/MS; Elaine Silva Miranda, Faculdade de Farmácia, Universidade Federal Fluminense, Niterói/RJ; Claudia Garcia Serpa Osorio-de-Castro, Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro/RJ. Publicado em 22.Fev.2021. Disponível em https://www.scielo.br/j/csp/a/KbTcQRMdhjHSt7PgdjLNJyg/?lang=pt#, acesso em 29.Mai.2021.

(2)- Ministério da Saúde. Nota Informativa nº 17/2020- SE/GAB/SE/MS. Orientações do Ministério da Saúde para manuseio medicamentoso precoce de pacientes com diagnóstico da Covid-19. Disponível em http://antigo.saude.gov.br/images/pdf/2020/August/12/COVID-11ago2020-17h16.pdf

(3)- Verdélio A. Brasil recebe dois milhões de doses de hidroxicloroquina dos EUA. Agência Brasil 2002; 1 jun. Disponível em https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2020-06/brasil-recebe-dois-milhoes-de-doses-de-hidroxicloroquina-dos-eua, acesso em 29.Mai.2021.

(4)- Vargas M. Saúde prevê gastar R$ 250 milhões para distribuir "kit covid". O Estado de S. Paulo 2002; 11 dez. https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,saude-preve-gastar-r-250-milhoes-para-por-kit-covid-em-farmacias-populares,70003547892, acesso em 29.Mai.2021.

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