O menino, o olhar e as lembranças.
Carlos Alberto dos Santos Dutra
Ah! Como o tempo voa. E as lembranças, de quando em vez, tomam de assalto nossa memória e nos fazem novamente pensar o quanto avançaram os nossos passos no rumo de uma estrada chamada felicidade. E isso muito nos conforta.
Com certeza, ele não lembra. Era um tempo que meus cabelos ainda eram pretos e longos. Corria o ano dois mil e dois, e havia mudado há pouco para o centro da cidade. Época que tínhamos o hábito salutar de conversar: um vizinho podia visitar o outro sem dificuldade alguma. Uma época onde o celular ainda era uma raridade distante. E a comunicação acontecia tête-à-tête e muito próxima do coração.
E ele estava lá, com mais ou menos cinco anos de idade, com seus olhinhos negros serelepes ao lado do pai, e a tudo observava. A conversa dos adultos girava em torno de causas judiciais, sociais e políticas; temas de predileção daquelas duas pessoas diferenciadas do restante daquela comunidade que emergia.
O bate papo despretensioso e desapaixonado fazia com que o diálogo se estendesse por horas, até o cair da tarde. Às vezes no meio fio da rua, outras vezes na varanda do amplo casarão onde o anfitrião educado recebia o amigo com modéstia e solicitude.
Homem calmo e dotado de cultura prática no campo que se especializara profissionalmente, vivia naquele lugar há mais tempo, e se permitia discorrer sobre temas da atualidade mostrando não somente a oratória que era possuidor, mas também que sabia ouvir e ponderar suas conclusões com o oponente.
E em meio essas longas conversas, o que acontecia no mais das vezes na presença da esposa e das filhas ainda pequenas, um par de ouvidos atentos se destacava entre os demais pelo interesse que demonstrava nos assuntos que eram debatidos em cada oportunidade.
E lá estavam, os olhos do menino, como que por encantamento, fixos sobre o semblante do visitante e seu pai, parecendo vislumbrar uma suposta aura de saber e conteúdo que os unia. Num dado momento, parecia que a criança comparava o cabelo do visitante com o seu, castanho escuro que lhe batia nos ombros. Uma espécie de cumplicidade visual os unia naquele momento.
Lembro que chegou a expressar algumas palavras na ocasião, falando em tom encabulado sobre aquele homem do cabelo grande, ou coisa parecida. Nesta época, muito apegado ao pai, se mantinha sempre ao lado, por vezes com os braços ao redor de seu pescoço, numa demonstração admirável de carinho e afeto, reveladora da dedicação e respeito que envolvia aquele filho e seu pai.
Hoje, passados mais de vinte anos, uma fotografia deste menino, postada no Facebook por uma de suas irmãs, me fez lembrar essa passagem, rápida e fugaz que me veio à mente. Lembrança que recupero na gaveta da memória entre os guardados que pavimentam a resiliência do edifício adulto que o menino e também nós construímos.
Imagem que ainda hoje marca o tempo que passou, e permanece, quiçá, nos sonhos e recordações que edificam e confortam. Sobremaneira naquelas noites que, de tempos em tempos, nos chegam, de súbito, lampejos da alma, em forma de escumas que sossobram sobre nosso travesseiro.
Para Pedro Galindo Passos (in memoriam) e Gregory, pelo seu aniversário.
Brasilândia/MS, 2 de outubro de 2022.
FOTOS: Cortesia Cíntia e Ingrid Karoline/Facebook.
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